Na beira daquele rio ficavam as fantásticas mulheres que limpavam fato (vísceras do boi), com muito zelo e depois de limpo elas improvisavam um fogo feito com os gravetos catados nas proximidades do rio, colocavam as tripas já temperadas com sal para serem assadas e depois compartilhavam com todos que ali estavam àquela deliciosa iguaria juntamente com um punhado de farinha - que era pra “render e dá sustância na barriga”. Eu acho que vem daí a minha simpatia pelo socialismo.
Os pescadores contavam que em noite de pescaria com lua cheia, eles viam assombração, outros diziam que era o pai da mata, outros acreditavam que era algum espírito que tomava conta do rio. Se era algum espírito protetor, eu acho que ele foi embora, expulso pela poluição e pelo desmatamento das matas ciliares, porque o meu rio secou, virou sertão. Só não secaram as lembranças que guardo em meu coração, que até hoje bate forte só de lembrar da sensação maravilhosa de liberdade ao pular de cima da pedreira dentro d’água, mesmo correndo o risco de morrer afogada, valia a pena.
Minha memória afetiva conseguiu registrar muito bem essas emoções, se eu fechar os olhos e pensar que estou de volta ao meu rio, sou capaz de sentir: meus pés tocarem a água, as minhas pernas sendo molhadas, o meu corpo mergulhando, meus cabelos se encharcando e minha alma flutuando como as bolhas de sabão das lavadeiras que entoavam suas cantigas enquanto colocavam as roupas para quarar sobre o lajedo. Hoje sei que parte do que sou, do que trago dentro da minha alma que tanto anseia por liberdade e alegria, vem da minha infância, de todas as sensações sentidas experimentadas, banhadas por aquelas águas mágicas.
“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.”
Assim como poeta Fernando Pessoa acha o seu rio mais belo que o Tejo, a minha pessoa também acha muito mais belo o rio que corria pela minha aldeia, porque só ele corria pela minha aldeia e continuou correndo dentro de mim.
Rosângela Fonseca do Nascimento.
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